Da Gata Preta: O desaforo de ser Ele
O texto abaixo foi retirado do Blog Da Gata Preta. É um material profundamente poético, fala de uma pessoa real de Juiz de Fora, uma reflexão humanista que nos remete a higienismo, espaço urbano e pertencimento. Recomendo muito a leitura e alguns minutos pensando sobre o tema.
O texto abaixo foi retirado do Blog Da Gata Preta. É um material profundamente poético, fala de uma pessoa real de Juiz de Fora, uma reflexão humanista que nos remete a higienismo, espaço urbano e pertencimento. Recomendo muito a leitura e alguns minutos pensando sobre o tema.
Ele decidiu morar ali. No Calçadão da Halfeld. No centro nervoso de Juiz de Fora.
Se instalou aos poucos. Uma mala, panelas, um colar elisabetano, alguns cobertores, caixotes de madeira, três cachorros. E Ele.
Os dias amanhecem e cada dia a fronteira daquela casa vai aumentando... Ali, no meio do ir e vir, de frente para uma instituição financeira, entre um cinema antigo e uma loja de sapatos.
Não atrapalha ninguém. Essa é a verdade. Não tem ir e vir. Tem o permanecer, que alimenta os olhares gulosos, de quem quer a vista “limpa”, a cidade guardada do que a faz real... O conflito, o caos que se ajeita no direito de cada um fazer da cidade aquilo que lhe convém em ser cidadão...
É no meio disso que Ele se instalou com os quinquilhumes, os cachorros, e a certeza de que é ali que ele quer ficar. A casa que Ele faz existir tem o piso de pedra portuguesa, e ela não aquece os dias e noites em que Ele e os três cachorros permanecem por ali, assistindo ao burburinho da cidade, e sendo parte significativa dele... Para os cães há olhares de acolhida, saquinhos de ração, banho e tosa vez ou outra... A Ele, as vozes do incômodo, da higienização, da intolerância, travestidas por trás dessa tal organização do espaço urbano... Essa crença besta de que a urbanidade se organiza pelas regras que os homens (a maioria são homens mesmo) e mulheres criaram. Gente besta essa que acha que o papel é maior que o desejo...
A cidade é gente! Gente que caminha, gente que transita, gente que movimenta. Gente! E, aquele olho guloso da exclusão, vai ensinando, que tem gente que não é tão gente assim... Então, pode sim, ser tirada das vistas, ser posta de lado, ter as coisas amontoadas... Talvez queimadas e postas no lixo.
É uma afronta! Não bastasse permanecer ali, ainda tem a ousadia de não aceitar o que dizem ser melhor para Ele. Nem o Estado. Nem o Mercado. Nem todas as pessoas que fazem estado e mercado existirem. Ele está ali. Ali permanece e ainda tem a petulância de criar cachorros... Ali permanece e carrega o desaforo de fazer da rua um território de direito!
A rua! O lugar! Os cheiros, os sentidos, os encontros. “Tudo na vida é encontro”. E os olhos gulosos alimentados de ignorância, racismo e preconceito fazem o corpo acreditar que o giro dos encontros não é tão necessário para a vida da cidade... Gente besta essa que acha que os espaços têm limites que quem define é o papel e a caneta...
Ele fica. Há quem diga que maltrata os cachorros... Há quem diga que precisa de cuidados. Ah, o cuidado! Esse revolucionário ato de amor... Diante da casa que Ele criou no Calçadão da Halfeld, o discurssozinho do “ele merece cuidados” se encerra nos limites do tirar da vista, do estabelecer o que deve para Ele ser a prioridade. Não sei se sabem seu nome, ou o nome dos cachorros. Não sei se conhecem a história que Ele carrega... E história é coisa que todo mundo tem!
Há quem diga que Ele é louco. E o que é a loucura? Qual necessidade é essa de circunscrever a experiência sensorial dentro de determinados limites que não se sabe ao certo de onde surgiram... Embora saibamos direitinho o motivo porque surgem... A invenção do que é normal. Do que é bom. Do que é certo. Do que deve ser o outro...
O louco. O proscrito. O bagunceiro. O desordeiro. O folgado. O insubordinado. Ele. Ele e os cachorros. Ele e as tralheiras. Ele. Ele e a sua decisão. Ali. No meio do Calçadão da Halfeld. Na mesma Halfeld, que até a década de 70 do século passado, dividia -se entre territórios de negros e territórios de brancos... Negros não circulavam até a fronteira da Rua Batista. Dali pra BAIXO, sim, era o lugar permitido... Que gente besta essa que não calibra o olhar para perceber o texto que Ele escreve sobre essa cidade, quando se instala num território demarcado pelo limite da fruição determinado pela cor da pele...
Uma afronta! Um desaforo! Um abuso! Ele com aquela “casa imaginária”, ali, na vista de todo mundo... Ele com aqueles cachorros... Ele com aquele corpo pobre, Ele com aquele corpo preto... Ele... Ele... Ele... Ele... Ele e a loucura. Ele e o racismo. Ele e a higienização. Ele e a pobreza. Ele e a rua. Ele e o direito. Ele e o texto escrito em cena viva sobre essa cidade engraçada e cheia de impedimentos, violações, limites e fronteiras para olhar...
Ler o que se esconde atrás das montanhas não é tarefa fácil... Feito a casa pelo meio da rua... Os quinquilhumes, os cachorros, os olhares de uma raiva histórica, os discursos bem ajeitados para construir a exclusão... Difícil feito Ele.
Ele... Ele... Ele... Ele e aquilo que Ele decidiu ser. Apenas Ser. Vivo. Humano. Gente!
É um desaforo goela abaixo dessa gente besta que ainda não se experimentou na aventura de adentrar ao desejo do outro...
A casa... a mala... as panelas... o colar elisabetano... os cobertores... caixotes de madeira... três cachorros... Ele.
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